Quando a ficção vira realidade
Naquela tarde, tarde calorenta, final de 2009, eu caminhava pelo centro de Jundiaí. Entrando em diversos estabelecimentos comerciais, pagando contas para minha irmã, vendo vitrines, divagando sobre passado e futuro... sentindo-me surpreendentemente leve e tranquilo após o término de uma relação que durara cinco anos, iniciando com serenidade um nova etapa na minha existência... lá estava eu, no centro da terra natal, apenas caminhando e cumprindo minhas obrigações familiares.
Após o dever cumprido, me presentei com uma coca-cola zero geladíssima e sentei num banco de praça para descansar um pouco. Eu olhava as pessoas passarem apressadas aqui-e-ali. E me divertia imaginando o que cada uma que me prendia a atenção estaria pensando naquele exato instante.
O prazer da bebida me trouxe um mar de ideias bacanas para ser acrescentadas num romance que eu estava rascunhando naqueles dias de vida livre. Era um romance que ilustrava as desventuras de um homem de rua. Ou melhor, de um cara que foi obrigado a viver nas ruas da minha real e fictícia Lovland.
Mas o que estava por vir quebraria totalmente a minha base de criação mais autêntica.
Pedindo dinheiro ou sei-lá-o-que para alguns passantes, reconheci ao longe um amigo de longa data que há anos eu perdera totalmente o contato.
Dico andava com dificuldade. Magérrimo, barba e cabelo desgrenhados, trajando uma calça social suja, em tiras, e uma camisa no mesmo estado, ele caminhava e balançava uma bolsa de lona... e percebi que ele pedia ou murmurava algo que assustava um pouco as pessoas.
Assustava mais por causa da sua aparência, essa é a verdade.
Eu fiquei petrificado. Não sabia que atitude tomar. O que fazer, como agir? Que ódio mortal de mim-eu-mesmo por não ter tido a coragem necessária de estender a mão ou fazer sei-lá-o-que para amenizar o sofrimento daquele ser esquálido!
Dico foi um grande amigo de adolescência. Foi um dos primeiro caras gays que conheci. Éramos cu-e-calça. Vivíamos saindo juntos pela noite jundiaiense. Eu era um garoto de quinze-dezesseis anos talvez. E Dico já tinha seus vinte-e-poucos-anos.
Era um homem lindo. Loiro, branquinho, de olhos verdes cristalinos, alto, magro, dono de um carisma fora do comum.
Não me lembro mais onde ou no que Dico trabalhava. A única lembrança forte que me tomou de assalto é que ele andava sempre “na estica”. A Ellus dominava a moda naqueles áureos tempos... Dico andava sempre vestido com os últimos (e caros) lançamentos.
Bebia... fumava cigarros “de marca”. Eu achava tudo aquilo o máximo. Eu adorava estar em sua companhia. Adorava “desfilar” com meu amigo chique aqui, acolá.
E como ambos não éramos de se jogar fora – o menino moreno peludo gostoso e o loiro nariz empinado capa de revista –, nos divertíamos a valer no meio da Bambeelândia, provocando a todos, “caçando” a torto e a direito os bambeebofies interessantes que babavam por nossos corpos, nosso jeito livre de ser, nossa alegria de viver.
Foi um tempo feliz. Foi um tempo bom. Foi um tempo de aprendizado!
Os anos se passaram. Inevitavelmente, cada um seguiu seu caminho. Deixei Jundiaí e ganhei o mundo. Descobri anos depois que Dico tinha AIDS. Amigos em comum me contaram o drama dele.
A decadência foi inevitável. Acredito que a família o expulsou de casa.
Dico passou a trepar com quem cruzasse seu caminho. Numa rara ocasião em que eu estava de passagem por Jundiaí – para comemorar as festas de fim de ano junto com meus familiares – lembro-me de vê-lo uma vez, tarde da noite, levando três marginais certamente drogados para um matagal próximo da estação ferroviária. Eu estava dentro do circular que ia da estação até a casa de minha tia.
Anos depois, esperando meu ônibus para ir de Jundiaí a São Paulo (eu, dentro de coletivos... coincidência?), cheguei a vê-lo totalmente transformado; uma figura horrenda que tentava “ser mulher”, de silicone aplicado e se travestindo porcamente à procura insana de aventuras promíscuas.
Mas eu jamais imaginei vê-lo no estado que o vi agora. O pior de tudo é que a concepção da porra do meu romance tratava exatamente desse tema. O pior de tudo é que eu havia idealizado exatamente a mesma cena dantesca que presenciei naquela tarde.
Meu deus, como isso quebrou tudo dentro de mim!
Porra. Uma coisa é você viajar na criatividade e criar algo fictício baseado em pesquisas, em coisas que “acontecem com os outros”, em experiências suas, enfim...
Outra coisa é você criar um enredo e de repente – pá-pum-bola – a porra toda se manifesta bem na sua frente!
Ver Dico naquela situação... se perdendo ao longe... caminhando para lugar algum... ver a porra de um amigo de anos e anos assim, jogado no mundo, doente, sem ninguém, se humilhando por míseros centavos para talvez comprar a porra do único pãozinho que o sustentará por dias e dias e nada mais!
Eu fiquei colado no banco de concreto... meu olhar vazio e inerte apenas acompanhou o amigo partindo ao longe. De repente me deu uma tremedeira louca, uma vontade maluca de chorar. E eu chorei. Publicamente.
Milênios de tempos depois, confuso e abatido, me levantei sem força nas pernas, procurando nos arredores a carcaça humana que implorava socorro imediato. Nada encontrei. Ele sumiu entre as ruas estreitas. Me senti o mais morfético dos seres.
Não sei o que eu poderia ter feito para amenizar um segundo que fosse a situação do meu amigo...
Não sei se aquela cena deveria ser a porra do sinal que faltava para fechar o quebra-cabeça do meu novo livro...
Não sei se, no fundo, eu acabaria retratando os milhares de “Dicos” que um dia tiveram tudo na vida, e na manhã seguinte perderam suas bases, seus alicerces, suas famílias, seus amores, seus amigos...
E foram forçados a se jogar nas ruas da cidade...
Na esperança de encontrar um recomeço...
De encontrar talvez um par de mãos calorosas que traga-os para uma vida digna e um abraço que lhes dê calor e carinho... que afugente seus sofrimentos...
Eu, um covarde cretino, não tive coragem de tomar essa decisão...
Ou talvez – do meu jeito – eu consiga algo através dos meus textos sagrados...
Dico, eu vou fazer a minha parte...
Que alguém lá do Alto, por hora, cuide de você...
E que eu tenha força... apenas força divina para escrever, um dia, um romance mágico... que toque o coração de todos!
Algo necessário... para a nossa sobrevivência.
* * *
P.S. Meu livro que retrata o artigo acima chama-se "Jaime". Está pronto, mas ainda precisa de uma boa revisão técnica e de acertos de continuidade em algumas passagens. Por hora, não tenho estrutura emocional para reler a história criada.
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